O vizinho

Foto de Marcelo Chagas no Pexels


    Existem algumas situações na vida que me deixam extremamente desconfortável. Quase todas elas envolvem outras pessoas.

    Simplesmente não nasci para interações sociais, principalmente com pessoas fora do meu convívio cotidiano. Quando eu ouço a campainha tocar, corro para me esconder no meu quarto antes que minha mãe abra a porta e não boto a cara para fora até a visita ir embora. Se eu estiver com fome, assim vou ficar até a barra estar limpa.

   Dado isso, vocês poderão imaginar como eu fiquei mortificada ao perceber que havia perdido minhas chaves e estava impossibilitada de entrar em casa até que minha mãe chegasse do trabalho dali a duas horas. Agora precisaria incomodar os donos do prédios para pedir uma chave reserva, isso se eles tivessem uma.

    Em outro dia, poderia simplesmente dar um passeio pelo bairro até minha mãe chegar, porém era um dia muito frio de inverno e a temperatura diminuía cada vez mais conforme anoitecia. Eu não havia me vestido apropriadamente para esse tipo de clima, então poderia acabar ficando doente se saísse assim.

    Mesmo preocupada quanto a minha saúde, ainda estava muito tentada a prosseguir com este plano. Talvez valesse a pena ficar doente para evitar aquela situação chata.

    Enquanto debatia sobre o que deveria fazer, vi a porta do prédio onde morava abrir e revelar a presença de minha vizinha e dona do edifício, Jezabel Alves.

    — Helena! O que faz aqui fora? — A dona Jezabel cumprimentou surpresa. — Está muito frio, menina!

    — Olá, dona Jezabel! — ri nervosamente.

    Jezabel Alves carregava dois sacos do que só poderia ser lixo. Ofereci-me para ajudá-la, mas ela descartou minha assistência com um aceno de cabeça.

    — Está tudo bem, não se preocupe — ela disse, então apenas a acompanhei até a lixeira enquanto explicava minha situação.

    — A senhora não teria alguma chave reserva que eu possa usar só hoje? — perguntei cheia de esperança. Estava orgulhosa de mim mesma por ter conseguido exprimir o pedido com tanta naturalidade, pois uma parte muito grande dentro de mim só queria abrir um buraco no chão e desaparecer na escuridão. O que será que ela estava pensando daquilo? Eu tinha certeza que,  apesar de me tratar com tanta gentileza, no fundo ela pensava que eu era uma desmiolada.

    — Oh, vamos lá comigo, meu bem — ela convidou e eu não consegui pensar a tempo em uma boa desculpa para não a seguir até sua residência. Se eu já ficava desconfortável só em pedir-lhe um favor, isso seria pior ainda. Era aterrorizante. Esperava que ao menos ele não estivesse lá.

    Já bastava a situação constrangedora de tentar manter uma conversa com uma mulher bem mais velha do que eu com quem tenho nenhum assunto o qual possa sustentar até que ela encontre as chaves. Não, se ele estivesse lá eu seria obrigada a fugir e aprender um jeito de arrombar portas.

    Deus poderia ser bom comigo só uma vez naquele dia e garantir que a gente não se encontrasse, não acham?

    Se você concordou comigo, ficará frustrado. Foi assim que eu me senti quando a dona Jezabel estragou minhas expectativas antes mesmo de chegarmos lá.

    — Gabriel pode te fazer companhia enquanto eu procuro — disse ela  e não gostei de sua expressão. Não gostei mesmo. O que ela pensava? Que eu queria ficar a sós com seu filho delinquente? Por que ela achava que eu sequer gostava da companhia dele?

    Ah, certo. Porque quando éramos pequenos costumávamos ser melhores amigos. Até que ele decidiu que seus amigos garotos eram mais legais do que eu e achou que seria legal encher meu saco, quase me levando à loucura, todas as vezes em que fomos obrigados a passar um tempo juntos desde então. Por Deus, eu odiava aquele garoto. Ele era insuportável.

    — Ah, claro... — dei meu melhor sorriso amarelo diante da perspectiva de que talvez eu precisasse ficar na ilustre companhia de Gabriel Alves pelas próximas duas horas.

    O apartamento dos Alves ficava no quarto e último andar. Era um edifício antigo, por isso não tinha elevador. Subi silenciosamente atrás da dona Jezabel, desesperadamente procurando algum tópico para conversar. No fim, foi ela quem puxou um assunto.

    — Faz tanto tempo desde que você foi lá, não é mesmo? — disse em um tom saudoso. — A última vez foi quando mesmo? No meu aniversário? Você precisa vir mais vezes!

    — Claro... É que eu andei ocupada com a escola e tal... Ensino médio... — eu não sabia o que dizer, então coloquei a culpa na escola. A verdade é que eu tinha tempo para subir e tomar um café com a dona Jezabel. Eu não ia porque... Bom, porque eu sou uma pessoa introvertida, como já ficou bem claro.

    — Queria tanto que o Gabriel fosse dedicado como você... — ela suspirou. — Ele não leva a escola muito a sério. Ele não leva nada a sério, para falar a verdade.

    Mordi a língua, evitando concordar com veemência demais sua afirmação. Eu sabia bem como podia ser difícil falar com seriedade com ele sobre qualquer coisa. Não me admirava que Gabriel levasse os estudos tão a sério quanto todo o resto.

    Chegamos ao último andar e a dona Jezabel abriu a porta, convidando-me a entrar primeiro. Entrei acanhada e deixei que ela me ajudasse a retirar meu casaco. Continuei com minha mochila, porém, com a desculpa de que teria prova no dia seguinte e precisava estudar. Sendo assim, fui deixada na sala de estar enquanto a dona Jezabel saía para procurar a bendita chave.

    Por um breve momento, enchi-me com a ilusão de que não precisaria falar com Gabriel. Bem breve mesmo, porque mal sua mãe saiu ele já estava na sala também.

    — Pensei ter ouvido sua voz, mas esse é o tipo de coisa que a gente só acredita vendo — esse foi seu cumprimento.

    Dizer que eu fiquei paralisada em sua presença seria um eufemismo. Simplesmente congelei ao ver que o garoto estava vestindo apenas uma cueca samba-canção de super-herói. Seu abdômen magro e pouco definido à mostra e seus cabelos bagunçados ainda molhados do banho. Usava um brinco de cruz em cada orelha e essa era a única parte em si nesse momento a qual eu estava habituada a ver.

    Gabriel arqueou as sobrancelhas, aguardando um pronunciamento.

    — Eu perdi minha chave — balbuciei como uma idiota. Pelo amor de Deus, Helena! Ele pode ser bonito, mas continua sendo Gabriel Alves! Não se engane... Ele é o mesmo garoto que puxava seu cabelo e te trocou pelos amigos garotos dele.

    — Hm... — ele fez. — Então está explicado o milagre. Desmiolada do jeito que você é, eu não devia estar surpreso.

    — Seria bom se eu perdesse a habilidade de entender imbecis também, não é mesmo? Infelizmente, continuo te entendendo perfeitamente — retruquei.

    — Uh, ela está afiada hoje — ele apenas riu. — Então vai ficar aqui até sua mãe chegar?

    — Até sua mãe encontrar uma chave reserva — corrigi.

    — Então é até sua mãe chegar. Duvido que minha mãe encontre alguma coisa na bagunça dela até lá.

    Suspirei, pois sabia que ele estava certo. Dona Jezabel nunca havia sido a mulher mais organizada do mundo.

    — Pode ser, mas você não precisa fazer sala pra mim. Pode ir fazer suas coisas — eu disse e tomei a liberdade de me sentar no sofá.

    — Você não pode mandar em mim na minha própria casa. E seria uma falta de respeito deixar uma convidada sem companhia, não acha? — e estendeu a mão pra mim. — Vamos para o meu quarto?

    — Ficou doido, é? — ri com descrença. Por favor, Deus... Ajuda a dona Jezabel a achar essa chave rápido!

    — Vamos, garota. O que foi? Está com medo de que eu faça algo contigo? — ele sorriu maliciosamente.

    — Não, mas não quero que sua mãe tenha ideias erradas sobre a gente — cruzei os braços, ainda recusando sua mão estendida.

    Gabriel revirou os olhos com impaciência.

    — Eu quero jogar videogame, mas minha mãe vai encher o saco se eu te deixar aí sozinha. Vem logo, caramba.

    Olhei-o cheia de suspeita, procurando algum motivo obscuro que poderia estar implícito na sua proposta, mas algo em sua expressão me convenceu de que estava tudo bem.

    — Ok. Você joga, eu estudo — estabeleci, levantando-me sem sua ajuda.

     Tanto faz, só vem logo — Gabriel deu as costas e foi para o quarto.

    Ok, Helena. Não pira. Você está indo para o quarto de um garoto que está vestindo apenas uma samba-canção, mas esse garoto é o Gabriel Alves. Não esqueça disso. Aquele Gabriel Alves catarrento com quem você costumava brincar quando era criança. O mesmo que fica o tempo todo fazendo piadinha sobre a sua altura e sendo um pé no saco. Não há nada demais no que está acontecendo, você não precisa ficar nervosa.

    Ao entrar em seu quarto, fui pega novamente pela surpresa. Esperava que seu quarto demonstrasse mais de seu aspecto rebelde. Uma parede negra cheia de posters de bandas de rock, talvez alguma pichação inteligível. Quem sabe um esqueleto, cama bagunçada, roupa por todo lado, sei lá.

    Ao invés disso, havia seu violão, um toca discos, uma escrivaninha, o videogame... Os posters estavam lá, entretanto não pareciam tão rebeldes em uma parede bege e um quarto tão arrumado. Não havia peças de roupa à vista e sua cama estava feita. O ambiente era até mesmo cheiroso.

    — Isso não está certo — não consegui evitar comentar.

    — Esperava o que? Uma cena de crime? — perguntou rindo.

    Seu sorriso desapareceu quando eu não respondi.

    — Você tem uma ideia totalmente errada sobre mim, sabia? O que deveria ser impossível, já que nos conhecemos a vida inteira.

    — Conhecemos? Porque pelo que eu lembro, nós não somos exatamente melhores amigos — encarei Gabriel duramente, mas não por muito tempo. Afinal, ele ainda estava seminu. — Pelo amor de Deus, vá vestir alguma coisa logo!

    Gabriel riu do meu desconforto e sumiu no seu closet por alguns minutos. Enquanto isso, instalei-me em sua escrivaninha impecável. Ao menos eu tinha uma explicação para aquilo. Ele não estudava, então não tinha motivo para estar bagunçada.

    — Ok, tive uma ideia — disse ele ao sair do closet, agora com sua camiseta característica de banda de rock e calças pretas. Agora sim era o Gabriel que conhecia.

    — Não quero — já interrompi, mesmo sem ter ideia do que seria. Qualquer coisa que partisse dele seria má ideia.

    — Vamos jogar Responde ou Me Beija — ele propôs, ignorando meu protesto.

    — Não quero — repeti enfaticamente.

    Esse era um jogo em alta nos últimos tempos entre os nossos colegas de escola. Acontecia em todas as festas e às vezes até mesmo nos intervalos entre as aulas.

    As regras eram simples. Bem parecido com Verdade ou Desafio, você precisava responder sinceramente todas as perguntas feitas a ti. Se fosse pego na mentira ou se recusasse a responder, teria que beijar a pessoa que perguntou. A graça era tentar perguntar coisas que deixariam a outra pessoa constrangida demais para responder. Geralmente, cada um da roda fazia uma pergunta para o escolhido da rodada, mas como éramos apenas dois, teríamos que responder apenas às perguntas do outro.

    Não que eu fosse jogar, é claro. Eu nunca jogava.

    — Vamos lá, Helena! Temos bastante tempo e o que você tem a perder? É só responder com sinceridade — ele deu de ombros.

    — Mas se você mentir eu vou ter que te beijar! — fiz uma cara de nojo.

    Gabriel franziu os lábios por um momento, pensando.

    — Já sei. Vamos fazer assim, eu vou te pagar um almoço para cada vez que eu mentir ou deixar de responder alguma. O que não vai acontecer de qualquer jeito — ele piscou. Vendo que eu não estava muito inclinada a mudar de ideia, acrescentou — Fala sério, você prefere isso ou ficar aí no canto estudando enquanto escuta eu matar uns zumbis?

    Eu devia estar ficando louca, pois aceitei seus termos.

    Sentamo-nos na sua cama, um de frente para o outro. Senti um frio na espinha ao encará-lo nos olhos e tive de me segurar para não limpar o suor das mãos nos meus jeans. Ele não podia perceber o quão nervosa eu estava.

    — Primeiro as damas — ele sorriu de lado e meu coração errou uma batida. Claro, por causa do nervosismo. Só por isso.

    — Ok.. Vamos ver.... — olhei em volta, tentando pensar em algo. Reparei que em uma prateleira alta havia algumas figuras de ação de heróis dos quadrinhos, o que me trouxe a lembrança de Gabriel seminu. Expulsei a lembrança antes que começasse a corar e perguntei a primeira coisa que me veio à cabeça.  — Desde quando você gosta tanto de HQs?

    Gabriel arqueou as sobrancelhas.

    — É isso que você quer saber? Bom, desde os meus doze anos, sei lá — ele deu de ombros. — Você prestou bastante atenção aqui embaixo, hein?

    — Era uma coisa impossível de não reparar. Já respondi a sua, agora é minha vez de novo — disse eu, implacável. Ponto pra mim.

    Gabriel fez uma careta, mas deixou que eu perguntasse de novo.

    — Por que você é tão chato? — perguntei com um sorriso irônico.

    — Eu não me acho chato, eu sou muito engraçado na verdade. Acho que fico um pouco chato quando morro repetidas vezes em algum jogo, mas isso é normal — ele disse com sinceridade. Que droga, era pra ele ficar irritado e não responder. — Minha vez. Com quem foi seu primeiro beijo?

    Franzi o cenho diante da natureza daquela pergunta. Ele havia dito que queria que eu mudasse minha visão sobre ele, mas lá estava Gabriel tentando me deixar constrangida.

    — Foi com o João — respondi sem hesitação, porém senti meu rosto ruborizar. Gabriel sorriu, como se esperasse aquela reação. Precisava dar o troco — Minha vez! Por que você não me convidou para o seu último aniversário?

    Qualquer pessoa ficaria constrangida diante de uma pergunta daquelas, mas não Gabriel Alves. Ele respondeu com muita naturalidade.

    — Porque eu não quis.

    Meu queixo caiu.

    — Você não está fazendo muito sucesso em mudar minha opinião sobre ti, sabia disso? — reclamei.

    — Sei, mas eu preciso ser sincero. Agora que respondi duas perguntas suas seguidas, acho que tenho direito a fazer duas também.

    Rolei os olhos e fiz sinal para que prosseguisse.

    — Você já me quis no passado? — Gabriel jogou a bomba e cruzou os braços como quem dizia: Quero ver você se livrar dessa.

    — Claro que não! — minha voz saiu um pouco mais aguda do que eu gostaria.

    — Helena, esqueceu que eu sei quando você mente? — ele riu, parecendo um pouco surpreso.

    — Eu não estou mentindo! — tentei me defender, mas para ser sincera...

    — Mentiu de novo! Além desse tom de voz que não convenceria nem a minha mãe, você não consegue sequer me olhar nos olhos nesse momento!

    Dito isso, Gabriel descruzou os braços e segurou meu queixo, forçando-me a encará-lo. Meu rosto imediatamente começou a pegar fogo. Por que eu fui inventar de jogar aquele jogo estúpido?

    — Ok, eu posso ter gostado de você antes de deixarmos de ser amigos — confessei, afastando-me de seu toque.

    — Já era, você já mentiu duas vezes e agora me deve dois beijos — Gabriel segurou meu rosto novamente e dessa vez eu não pude me afastar. Ok, eram só dois beijos. Nada ia mudar por causa disso. Essa história de gostar dele era antiga e ele só havia me perguntado para me desiquilibrar.

    — Está bem, mas nada de língua. Não banque o espertinho — adverti com um suspiro e me inclinei para mais perto dele.

    De repente, o olhar de Gabriel ganhou uma intensidade completamente diferente. Em silêncio, ele se aproximou de mim e encostou os lábios nos meus por um longo momento. Não me movi, sequer respirei.

    O toque macio de seus lábios eram convidativos, mas me mantive como uma estátua até ele se afastar alguns centímetros e me encarar novamente. Ele não disse nada, mas seu olhar era hipnotizante. Havia algo ali que eu não havia notado antes, algum tipo de desejo que eu não entendia muito bem. Quando ele se aproximou novamente, abraçou-me pela cintura e seu beijo foi ainda mais convidativo do que antes. Desta vez não consegui evitar e o correspondi.

    O beijo de Gabriel era surpreendentemente delicado e quente. Estar assim tão próxima dele me fez sentir algo completamente novo. Um calor se espalhou por todos meus membros e todo o constrangimento e raiva que sentia ficaram de lado. Uma espécie de véu mágico nos envolveu e fez o tempo parar por alguns segundos.

    Até que sua mãe irrompeu no quarto.

    — Helena, querida, achei a chave! — disse animada antes de perceber a nossa situação. — Ops, vejo que vocês estão ocupados, desculpa!

    E se retirou.

    — Mãe! — Gabriel se afastou, encerrando de vez o momento que tivemos, e saiu do quarto em seguida, deixando-me sozinha com minha razão que voltara e estava muito brava comigo.

    No que você estava pensando!? Você é idiota!? Como pôde se deixar cair na conversa desse cara!? Burra, burra, burra! Você é estúpida!

    Minha consciência conseguia ser bem maldosa às vezes.

    Juntei toda a coragem que consegui e peguei minhas coisas. Ok, estava na hora de ir para casa e morrer de vergonha no conforto da minha cama.

    Não consegui entender o que Gabriel havia dito para sua mãe antes de sair com uma batida violenta na porta de entrada.

    — Hm — limpei a garganta. — A senhora achou a chave?

     Ah, sim — ela pareceu desconcertada. — Desculpe, minha querida. Não esperava aquilo. Não foi minha intenção interrompê-los.

    Meu rosto devia estar da mesma cor que uma cereja.

    — Está tudo bem, dona Jezabel. Aquilo não foi nada — fiz um gesto confuso com as mãos, tentando me explicar, sem encontrar as palavras certas.

    Dona Jezabel não estava procurando por explicações, apenas me deu a chave  e um casaco para Gabriel, disse-me que Gabriel provavelmente estava no terraço e caso eu quisesse procurá-lo devia levar o casaco para ele.

    Agradeci, peguei a chave e o casaco dele e me mandei o mais rápido possível sem ser mal educada.

    Finalmente em casa, depositei a chave na mesa e fui direto para meu quarto me jogar na cama e enterrar minha cara no travesseiro. Então, eu gritei.

    É um jeito muito bom de extravasar emoções, ainda mais emoções confusas como aquelas que eu estava sentindo.

    Fiquei ali por alguns minutos tentando organizar meus pensamentos. Cheguei à conclusão de que precisava brigar com Gabriel por ter se aproveitado de minha ingenuidade e fui atrás dele no terraço.

    Não, não fui porque eu estava preocupada.

    O que foi? Agora também sabe quando eu estou mentindo?

    Tanto faz.

    Eu peguei meu casaco mais quente e subi as escadas até o terraço levando nos braços o casaco que sua mãe me dera.

    Encontrei-o lá. Estava sentado em um banco de madeira de dois lugares, direcionado para uma vista da cidade e do pequeno jardim de sua mãe.

    Devia estar congelando por baixo daquela camiseta. Aproximei-me devagar e sentei ao seu lado.

    — Você vai ficar doente se não entrar logo — estendi o casaco e ele o vestiu em silêncio.

    Não sabia o que dizer no momento que se seguiu. Ele parecia tão infeliz que não tive coragem de brigar com ele.

    Foi Gabriel quem quebrou o silêncio.

    — Eu menti. Queria ter te chamado para o meu aniversário — ele disse. — Mas você me odeia, então achei que ia recusar de qualquer jeito.

    — Eu não te odeio — respondi baixinho, constrangida. — Só te acho muito inconveniente.

    — Preciso me desculpar por ter me afastado de você há alguns anos... Não devia ter feito aquilo. Todos os garotos estavam me enchendo o saco falando que você era minha namorada e sei lá, fiquei com vergonha disso. Crianças são estúpidas.

    Olhei para o céu e vi um pequeno floco de neve cair lentamente.

    — Quando você me afastou, eu fiquei sem nenhum amigo — confessei. — Isso me magoou muito.

    — Desculpa — ele me olhou com tristeza aparente. — Se eu pudesse voltar no tempo, jamais teria feito isso.

    — Ora, ora... Então Gabriel Alves sabe falar sério de vez em quando — brinquei, tentando aliviar o clima pesado e vi um pequeno sorriso brotar em seus lábios. — Está tudo bem, acho que não é tarde demais para voltarmos a ser amigos.

    — Amigos? — ele franziu o cenho. — Você beija seus amigos daquele jeito?

    Mordi o lábio inferior, sem resposta para aquilo. Ao menos ele havia voltado com suas brincadeiras desconcertantes.

    — Eu não quero ser só seu amigo, Helena — Gabriel sussurrou e tocou meu rosto com seus dedos gélidos, o que me fez recuar um pouco.

    Vi sua expressão murchar rapidamente, entendendo meu recuo de forma errada. Sim... Aparentemente, eu também não queria ser apenas amiga dele. Não me peça para explicar, nem eu estava me entendendo. A única coisa que eu entendia era que queria repetir o que havia acontecido no quarto dele.

    Antes que fosse tarde demais e eu perdesse a confiança, inclinei-me e o beijei novamente. Gabriel não demorou para retribuir meu selar e me abraçou.

    — Você me deve um almoço — sussurrei, ainda próxima aos seus lábios e ele riu, assentindo.

    Às vezes precisamos nos arriscar um pouco e sair da zona de conforto. Se eu não tivesse encarado a dona Jezabel e aquele jogo idiota, quão diferente teria sido aquela noite?

    Ficamos nos beijando ali no frio, enquanto a noite caía, até que minha mãe chegou do trabalho e quis saber onde diabos eu havia me enfiado.

    Passar duas horas na ilustre companhia de Gabriel Alves não foi tão ruim assim, afinal de contas.

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